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O quase herói do vale

Sumago é até hoje lembrado como quase herói em todo o vale da Barrinha – história que vem sendo repassada de geração a geração desde o dia em que, puxado pela correnteza, desabou pela cachoeira. Deu-se isso faz coisa de uns 70 anos, num tempo em que ainda não se entendia que caçar era coisa feia. Segundo ele contava, rolara uns 50 metros embolado nas águas se esfregando nas pedras, porém sobrescapara vivinho e ledo.

     Campeiro valente, zunia nos pastos, serra acima, serra abaixo, cavalgando atrás das cabras. Nos dias de folga costumava caçar: conhecia a mata como a palma da mão; pontaria firme, acertava o alvo a espichados metros da mira.

     Medroso não era, jurava que não. Além do mais aquela mata fazia tempo estava “desonçada” e outros bichos não o assustavam, nem tamanduá-bandeira.

     De onde surgira então aquela pintada? Tudo que era caçador garantia que onça havia acabado ali – a última tinha sido assada pelo Tonhão Tripeiro uns quinze anos passados. Não era possível ter sobrado filhote pra crescer e agora aparecer num de repente assim. Só podia ser assombração, queria ele imaginar. Mas não era não. A baita miou, partiu pra cima do caçador, que depois de tremendo berro se jogou mata abaixo, pulando troncos e pedras, a perversa atrás, o pavoroso miado, o vulto medonho, pega que pega…

     Sumago na afobação perdeu a espingarda, rasgou a camisa, enroscou a calça num espinhal, o fôlego a toda, se livrou nu, a onça atrás, gulosa, miando.

     Se alcançasse o rio, estaria salvo; era a sua esperança, arranhado, os pés arrebentados, serra abaixo, a onça nos calcanhares dele, cadê esse rio que não chega? Olha lá… só mais um tiquinho e pronto, a baita preparando o bote, ele enfim saltou na água… ti-bum. Salvo?

     Salvo coisa nenhuma. A malvada pulou atrás, nadava ligeiro ela, ele a sessenta braçadas por minuto, ela encostando com os dentões arreganhados, faminta, Sumago aguentando mais do que aguentava, a resistência acabando, vontade de se entregar logo à ferona, terminar de vez aquela briga doida… Seria afinal o dia da caça…

     A correnteza puxando, já bem pertinho a cachoeira. Caindo no precipício seria morte certa. Mas pouco importava, pensava ele. Melhor se esborrachar nas pedras do que virar comida de onça. Logo ele, caçador de fama. Queria tudo, menos sofrer tamanha humilhação.

     Rolaram os dois corpos pela cachoeira, Sumago e a baita. Milagre? O caçador sortudo caiu na água macia, foi ao fundo, voltou revivo. A onça? Até hoje ninguém sabe. Simplesmente sumiu. 

     O brioso rapaz espalhou a notícia – tinha tudo para com essa virar herói no vale. Pena que, por falta de testemunha, a vizinhança reagiu meio assim, meio duvidante. Ficou a fábula no ar. 

A. A. de Assis
Foto – Reprodução

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