Ele já abraçou o mundo, cumprimentou reis, parou guerras, fez adversários o reverenciarem, levantou arquibancadas com jogadas geniais e transformou estádios em teatros em que, no lugar dos xingamentos, se ouviram aplausos. Dobrou o mais rude torcedor e o transformou em lorde pleno de reconhecimento. Estabeleceu recordes, conquistou três Copas do Mundo, acertou o alvo com 1.281 gols, segundo a mais do que confiável IFFHS (Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol). Pelé, que comemora 80 anos nesta sexta-feira (23), se mantém como símbolo do Brasil.
De 7 de setembro de 1956, quando estreou no Santos, com 16 anos, a 1º de outubro de 1977, quando se despediu, no Cosmos, Pelé foi um ícone. Atualmente, está recluso. Pelé não vive de renda, apesar de ter sido o precursor do marketing no futebol, em sua então milionária transferência para o Cosmos e suas inúmeras propagandas. Continua com patrocinadores. Porém, Pelé vive, acima de tudo, de glórias.
Não que sua rotina, já sem que ele consiga se locomover com as pernas, seja monótona. Ele, que durante a carreira não sofreu uma única fratura, teve movimentos comprometidos em função de cirurgias por causa de fibrose e na coluna, entre outras questões de saúde. Costuma dizer que tais “contusões” ocorreram na hora certa, após o fim da carreira de jogador. Foram a conta, por exemplo, do esforço em conseguir chegar a 2,74 metros para um cabeceio.
O maior ídolo do futebol acompanha à distância tudo o que se passa em seu esporte e no mundo. Às vezes opina, como quando elogiou Cristiano Ronaldo por ter ultrapassado a marca de cem gols por Portugal. Mas está ligado, protegendo-se inclusive da covid-19. Nem a pandemia, porém, tirou sua majestade.
As primeiras declarações para os festejos do aniversário foram enviadas aos veículos de imprensa que engordavam os inúmeros pedidos de entrevistas. Foi só. Mas já o suficiente se considerado que veio de um rei. A voz tranquila e o jeito despojado continuaram como marca de um Pelé recluso pela pandemia do novo coronavírus e com dificuldades no caminhar.
“Se eu fiz alguma coisa que deixou alguém triste, alguma vitória que o Santos teve, que a seleção teve, que a seleção do Exército teve, todos os campeonatos que eu ganhei e jogos que ganhei, claro que o outro lado fica um pouco triste, isso é coisa da vida, me desculpem, mas agradeço de coração tudo o que ganhei na minha carreira”, disse o Rei do Futebol.
Poderia parecer que os mais jovens estivessem apenas concentrados em Messi e Cristiano Ronaldo, dois astros dos últimos anos que estão longe de alcançar os feitos de Pelé. Mas seu posto de melhor de todos os tempos continua intacto quando se ouve um jovem, que nunca o viu jogar, perguntar, preocupado. “Como está o Pelé?” Ele está falando em um símbolo do País, cresceu ouvindo alertas para que não deixasse as peripécias as atuais celebridades da bola apagar tudo que a lenda fez.
O “Rei do Futebol”, denominação que recebeu de uma revista francesa logo após a Copa de 1958, quando entrou no terceiro jogo e, até a final, marcou seis gols, é eterno. Mas o cidadão Edson Arantes do Nascimento, que veio ao mundo em 23 de outubro de 1940, em Três Corações (MG), agora percorre a chamada “feliz idade”.
Seu rosto conhecido, ornado pelo cabelo em forma de leve topete, com dois olhos volumosos como duas bolas, pálpebras avantajadas, bochechas salientes dando curvatura à linha reta vinda da testa, em diagonal, ampliando seu sorriso de menino, porém, continua o mesmo. Assim como seu espírito ativo.
Pelé tem mesmo um ar de estadista. No dia em que recebeu a imprensa, em novembro de 2019, no Museu Pelé, para comemorar os 50 anos de seu milésimo gol, todo o cerimonial terminava com o êxtase de encontrá-lo no fundo de sua sala, sentado à espera de mais uma entrevista.
Era como se estivéssemos entrando em um túnel da história, cercados por um cenário secular, à beira do porto de Santos, sobre paralelepípedos e trilhas de ferrovias e ao lado de casarões dos tempos do café. Puro Brasil, de senhores, escravos, negritude, colonização, independência, futebol, cultura e identidade, resumidos na figura de seu ídolo maior.
‘Pelé do basquete’, ‘da música’…
Por tudo isso, por seu impacto que transcende o futebolístico e atinge o sociológico, Pelé se tornou fonte de admiração e devoção, inclusive de ex-companheiros, como Tostão, Eduardo Gonçalves de Andrade, 73 anos, craque que fez parte da seleção tricampeã mundial em 1970. Geralmente comedido, ele não esconde a emoção ao falar do mito e companheiro de tantos anos.
“80 anos é uma idade marcante, não é para qualquer pessoa e Pelé é especial. É o maior fenômeno do Esporte, símbolo maior de qualidade. As pessoas passaram a usar como parâmetro o seu nome para falar de alguém que faz algo com excelência. ‘É o Pelé do basquete’, o ‘Pelé da música’ e por aí afora. Está de acordo com o futebol que ele jogou. 80 anos é uma marca, pena que não vai viver eternamente. Mas desejo que viva ainda muito e bem, Pelé é muito importante para todos nós”, ressaltou Tostão.
Enquanto os olhos do leitor percorrem essas linhas, incontáveis mensagens pelas redes sociais, WhatsApp e até cartas, telegramas e telefonemas se multiplicam, unindo o antigo ao moderno, a memória à celebração do presente, como é a própria imagem de Edson Arantes do Nascimento, um menino simples que conquistou o mundo com seu dom genial, intuído no terrão do interior do Brasil e elevado à máxima potência nos mais consagrados estádios. Tostão, assim como tantos outros que não têm visto o amigo, entende que Pelé vive um outro momento.
“Não tenho tido mais chance de estar com o Pelé. Ele está mais em casa. Até pouco tempo atrás ia de um lado para o outro, podíamos nos ver e botar a conversa em dia. Era um cidadão do mundo”, disse.
A passagem de Pelé pelo futebol colocou o Brasil no mundo, de certa maneira. O País, antes, era visto como um território tropical, de belezas naturais e vasto litoral, sem, no entanto, causar impacto por suas façanhas culturais, esportivas ou por seus personagens que, por aqui, já esbanjavam riqueza criativa. Carmen Miranda, que espalhou sua musicalidade pelo mundo, havia sido uma exceção.
E, assim que ele se despediu do futebol, em um amistoso entre os dois clubes pelos quais atuou, Santos e Cosmos, em 1977, pode-se dizer que o futebol brasileiro ficou um pouco órfão. Claro que outros craques vieram, mas o vazio da ausência de Pelé gerou momentos de crise, movida, principalmente, pela exigência de o Brasil jogar sempre como se tivesse Pelé.
“Pelé se tornou uma figura marcante, inclusive como um símbolo da maior qualidade. Esse sentimento ficou presente no futebol brasileiro, como uma referência, uma meta de que temos de melhorar sempre, buscar o máximo, seja técnico, jogador e até em outras profissões”, disse Tostão.
Um Michelângelo, um Da Vinci e um Pelé
Pelé e Tostão mostraram um entendimento pleno durante a Copa de 70. E Tostão conta que teve de tentar entender o que se passava na mente genial do companheiro de seleção brasileira, que, às vezes intuitivamente e outras conscientemente, criava jogadas como se estivesse desenhando obras-primas no campo.
Vide a meia-lua que ele deu no goleiro uruguaio Mazurkiewicz, o chute do meio-campo que quase encontriu o tcheco Viktor ou a cabeçada milimétrica, pura geometria e física unidas, que foi desviada de forma magistral por Gordon Banks.
Foram, apenas, as de maior repercussão internacional. Dentro do País, testemunhas relatam façanhas inesquecíveis como a do gol contra o Fluminense, em 1965, que deu origem ao chamado gol de placa, após, inebriado, o jornalista Joelmir Betting ter providenciado uma placa em homenagem ao gol, até hoje nas paredes do saguão do Maracanã. Ou a do gol contra o Juventus, em 1959, após ele sair “chapelando” adversários, inclusive o goleiro Mão de Onça.
É por isso que o próprio Pelé sempre afirmou que, como houve apenas um Michelângelo e um Leonardo da Vinci, Pelé será sempre único. Ele também sobrepujou o sentido futebolístico da afirmação para elevá-lo a um sentido artístico e humanista.
“Jogar com ele era muito fácil e muito difícil. As duas coisas. Teoricamente seria mais fácil porque ele simplificava tudo para um companheiro. Por outro lado, era difícil, sentia muitas vezes dificuldade em acompanhá-lo, tinha um raciocínio rápido que se iniciava antes mesmo de a bola chegar até ele. Então eu olhava e pensava: ‘O que será que ele vai fazer?’. Era preciso tentar acompanhar o raciocínio e o reflexo dele. Tente fazer isso quando o tinha ao meu lado”, contou Tostão.
A consagração precoce de Pelé, após estrear em 1957 na seleção e ser campeão mundial no ano seguinte, também inspirou jovens daquela geração, como o ponta-esquerda Edu, Jonas Eduardo Américo, de 71 anos. Driblador e espontâneo, até hoje ele se orgulha de seu estilo bem brasileiro e, no seu e-mail, se intitula edudriblador@.
Ele não tem dúvidas de que Pelé sempre foi sua maior referência em campo.
“Pelé, o Rei do Futebol, ele representou e representa muito não só para o Brasil como para o mundo. Em termos de responsabilidade, determinação, disciplina, é exemplo de conduta e profissionalismo. Jogamos juntos por 10 anos , dentro de campo genial, e digo isso com letras maísculas, fora de campo um grande amigo e exemplo de humildade” observou Edu.
Ainda hoje, reverbera nos ouvidos de Edu, a afirmação do quase irmão mais velho antes da Copa de 1970, quando estiveram no mesmo grupo. Pelé buscava reconstruir sua imagem após a Copa de 1966, da qual saiu contundido, após dura entrada do zagueiro português Morais, durante a frustrante campanha da seleção.
No ano seguinte, ele havia até se despedido do escrete, termo tão usado por Nelson Rodrigues, mas resolveu retornar para o Mundial de 1970, em busca de sua reafirmação.
“Um fato importante durante nossa convivência nas concentrações aconteceu na Copa do Mundo de 70 , quando ele nos disse que se preparou bem para aquela Copa e, antes mesmo dela se iniciar, afirmou que o mundo ia saber quem era o Pelé”, disse.
Pelé no marketing
Era mais uma questão íntima dele já que, por tudo que havia feito, seu talento era inquestionável. Mas a mínima cobrança externa já acionava uma pressão interna que o mobilizava a seguir rumo a novas conquistas.
Esse alimento, chamado de competitividade, fez Pelé ser pioneiro do futebol moderno. Deu origem ao glamour da camisa 10, após o craque ficar, por acaso, com esse número no Mundial de 1958. A então CBD (Confederação Brasileira de Desportos, hoje CBF) não havia enviado o número de cada jogador e teve de fazê-lo às pressas, na véspera do início da competição.
Pelé também foi o primeiro a entrar com mais ênfase no mundo dos negócios no futebol, apesar de Leônidas da Silva ter dado origem ao famoso chocolate “Diamante Negro”.
Além do apelido de “Rei”, Pelé tem outros dois títulos exclusivos e individuais. Foi eleito o “Atleta do Século”, em prêmio concedido pela revista francesa L’Équipe em 1981 e o “Melhor Jogador do Século da Fifa”, taça recebida em 2001.
E se hoje, com chuteiras e gramados muito melhores, Messi já desbrava zagas vindo de trás com a bola dominada, Pelé tem o mérito de ter sido o primeiro a fazer isso, de uma maneira ainda mais marcante, por ser inovadora.
O gênio é alguém que cria algo novo, que percebe o que ninguém percebia e traz à tona o que já existia, mas estava oculto. Pelé fez isso e nomes como Rivellino, Zico, Messi e Maradona tiveram o mérito de dar continuidade em um alto nível.
Agora, seu antigo assessor, Pepito, o José Fornes, confirma que ele ficou mais recluso. Pelé e Pepito se conhecem desde os anos 60, quando Pepito era promotor de vendas da Varig e negociava as viagens do Santos com a diretoria do clube.
Ambos acabaram se tornando amigos. Pelé então chamou Pepito para abrir a primeira empresa que o representava. Até hoje mantêm contato, apesar de o seu representante oficial agora ser a Sports 10.
Mesmo distante, em sua casa em Santos, Pelé continua procurado. São mais de 2 mil pedidos de entrevistas, fila acumulada em função da comemoração dos 80 anos. É um sinal de que continua em alta.
Em tempos de pandemia, todo o cuidado é pouco. Ainda mais em função dele estar no grupo de risco, mais vulnerável à covid-19. Pelé, que já jogou bem em todas as posições, preferiu ficar mais na “retaguarda” neste momento. Pai, avô, filho de Dondinho e de dona Celeste e irmão de Zoca e de Maria Lúcia, sempre foi adepto das celebrações em família. Desta vez, também pelo bem dele e do Brasil. Afinal, o octogenário Pelé continua a atrair multidões. Que se aglomeram ao seu redor.
R7
Foto – Reprodução